Fale meu “velho” Umberto. A sua benção. Senta aqui ao meu lado. Bem pertinho pra que posso sentir a tua presença e o teu amor.
O senhor deve ter estranhado essa sugestão de conversarmos num banco de praça. Mas é que enquanto o senhor esteve fisicamente aqui comigo nós fizemos muitas coisas juntas, soltamos papagaio, jogamos bola, fomos pro sítio, viajamos, mas não me lembro de termos sentado pra conversar. É verdade, eu ainda era um menino. Talvez por isso.
Mas hoje quis vim pra cá. Assim podemos conversar olhando a vida, com suas contradições. A mulher que passar apressada com o filho no colo, o menino que perambula com uma garrafa com cola de sapateiro, o estudante fardado matando aula, a gari que muito dignamente recolhe o lixo jogado na praça.
Cheguei cedo. Fiquei esperando o senhor. Precisava pensar um pouco. Saber sobre o que conversar. Fiquei aqui, sentado, sozinho. Fechei os olhos. Fiquei um tempo ouvindo a vida passar e imaginando pelos sons os movimentos da cidade.
A buzina do motorista apressado, o ronco do bêbado que dormiu na praça, a oração de um pregador que prometia o reino dos céus aos que o seguissem, a promoção anunciada pelo vendedor da loja em frente, até o fuxico dos homens jogando dama puder ouvir. Engraçado, Pai, esse emaranhado de sons desconexos constroem na minha alma a imagem da vida. São sons que expressam uma sinfonia de rostos, gostos, crenças, esperanças, sonhos e também angústias, dores, sofrimentos.
Você me conhece bem. Sabe que sou apaixonado pela vida e pela humanidade. Que teimo em acreditar nos homens e valorizar as suas virtudes.
Ainda de olhos fechados e esperando você chegar, lembrei da Rita Montenegro que já deve ter encontrado você por ai – imagino que ai por cima todos vocês se conhecem. Ela se foi sem que eu desse o último abraço – ela teria ficado feliz com o meu abraço. E dessa vez a culpa foi minha. Foi sim, pai. Quando você se foi eu não tive tempo de dar o último abraço. Quando a Maria Carolina se foi, também não. Mas com a Rita não. Eu deixei pra depois, mesmo sabendo que o depois pode não existir. E não existiu.
Preciso te contar o que aconteceu por aqui.
Desde que a Rita ficou doente, tia Francisca insistia que eu ligasse pra ela. E eu sempre deixando pra depois. Com a piora do quadro, a tia voltou a insistir e num domingo à noite, disse à tia: vou ligar agora e na terça vou visitá-la. Liguei. Exatamente na hora que Deus levou ela para perto de si! Não deu tempo do abraço que seria tão importante pra ela e também pra mim.
Pai, a Rita me queria tão bem. Eu não tinha o direito de não dar esse abraço. Acho que posso agora aproveitar pra te pedir um favor. Dá um abraço nela por mim. Pede perdão por mim. Diz que agora o último abraço dela ficou guardado onde está o último seu e o da Carol.
Preciso falar com você sobre isso pra aliviar minha alma, mas também para que todos dessa praça ouçam e aprendam que gestos de amor e carinho nunca podem ser deixados pra depois. Depois pode ser tarde demais. Depois pode até não existir.
Amor pela vida. Esperança na humanidade. Sem isso a vida perde o sentido. Tenório já escreveu que a vida é uma passagem. Precisamos fazer dela uma passagem de luz.
Vamos caminhar um pouco, meu velho. Vamos andar de mãos dadas. Eu ainda lembro toque das tuas mãos. Foram as mãos que sustentaram os meus primeiros passos de criança e que ainda hoje sustentam meus passos da vida.
Ando refletindo sobre as perdas que o destino me impôs. Sabe, pai. Acho que essas perdas foram a forma que Deus encontrou de me ensinar a amar a vida, a valorizar as pessoas e a acreditar na humanidade. E olha que depois de todas as lições, eu ainda me dei ao direito de deixar o abraço da Rita para outra hora. Não deu tempo…
Também não deu tempo de dizer adeus a você e nem à Maria Carolina. Mas vocês ainda estão aqui. Podemos sentar na praça, andar de mãos dadas, posso te confessar meus segredos e dividir contigo minhas alegrias e as minhas dores.
Olhe, pai! Aquela criança no colo da mãe. Parece a sua neta Marcelinha. As crianças são a perfeição do projeto de Deus pra humanidade. São fonte de pureza e esperança. Nelas não existe vingança, ódio ou rancor. Nelas não existe traição, deslealdade ou covardia. Nelas não existe ganância, avareza ou egoísmo.
Oh, pai. Segura essa lágrima. Sei que querias ter tido a oportunidade de abraçar, beijar, de ver teus filhos e netos crescerem, mas você mais do que eu sabe que a vontade de Deus é maior e que seus propósitos são sempre pelo amor. É bom olhar pra trás e só ser capaz de guardar boas lembranças.
Tudo que preciso agora é que segures um pouco mais a minha mão. Vamos andar um pouco alimentado nossos espíritos de silencio…
Pai, dias se passaram e nos continuamos aqui nessa praça. Foram dias sem palavras, dias de experiências com sentimentos, toques, cheiros, gostos. No dia 06.10.2013 fez 28 anos que você se foi, chorei baixinho, acariciei teus cabelos, beijei teu rosto, sem dizer uma palavra. Nesse tempo o Rodrigo – nosso caçula – casou e eu entrei na Igreja com a mamãe e disse a ela: – Nós vencemos! E abracei o Rodrigo e também disse a ele: – Nós vencemos! E a mamãe viu uma borboleta na Igreja (borboletas não aparecem a noite nas igrejas) e disse que você estava lá, assistindo a tudo. E feliz.
Numa caminhada cheia de atalhos da vaidade, da ganância, da prepotência, cheia das barreiras do medo e da insegurança. Nós vencemos porque nem nos sujeitamos às tentações dos atalhos e nem sucumbimos às dificuldades das barreiras. É bom chegar até aqui e vê a bela família que construímos. Chegar até aqui e saber que, eu e meus irmãos, tudo que conquistamos na vida foi fruto de estudo e trabalho. Chegar até aqui e vê que cuidamos da nossa mãe, na sua ausência, e também cuidamos uns dos outros. Meu velho Umberto, você construiu uma bela família. Mamãe seguiu o seu destino e cuidou de nós com um amor inigualável. Obrigado, meu amado pai.
Eu sinto saudade, meu velho. Não é angústia. Não é sofrimento. É só saudade. Saudade boa. Saudade que alimenta a alma e aperta o coração com um laço vermelho. Saudade que vem só com lembranças boas.
Sempre chega a hora de você ir. Dessa vez sinto que ficamos mais tempo. Conversarmos por horas e andamos em silencio por dias. Posso ver nos teus olhos que hoje também é um dia de saudade pra ti. Chora não, pai. No amor verdadeiro não há morte, só há vida. Não há sofrimento, só há esperança. Não há dor, só há alegria. No amor de verdade não há distância, não há ausência. Só há aquela saudade gostosa. Quando há amor de verdade borboletas entram na Igreja no meio da noite.
Vamos fechar os olhos. Posso sentir a tua mão e o teu abraço. Posso sentir mais. Posso sentir a tua presença, mesmo 28 anos depois que você se foi. Estaremos sempre juntos, porque se fecho os olhos e posso te ver é porque você está aqui comigo. Vai, pai. Sua benção, meu velho. Amo você.